Clássico moderno - Paavo Järvi traz ao Brasil leitura contemporânea das nove sinfonias de Beethoven
O Estado de S.Paulo
João Luiz Sampaio
01/08/2013
Dos acordes iniciais da Quinta - tocados em uma sala de
concertos ou em um comercial de lâminas de barbear - à mensagem de paz e
união da Ode à Alegria que encerra a Nona, as
sinfonias de Beethoven tornaram-se parte indissociável da cultura
ocidental. Testemunhos disso não faltam. Uma rápida pesquisa no site
Amazon indica mais de 20 mil registros - e, mesmo com uma indústria
fonográfica em frangalhos, sete novas gravações das nove sinfonias do
compositor foram lançadas nos últimos cinco anos.
Maestro rege as nove sinfonias de Beethoven (Julie Baier/Divulgação)
É com essa premissa nada modesta que o maestro estoniano Paavo Järvi desembarca hoje em São Paulo para quatro concertos em que vai interpretar, à frente da Filarmônica Alemã de Câmara de Bremen, as nove sinfonias de Beethoven, no Teatro Municipal e na Sala São Paulo, pela temporada do Mozarteum Brasileiro.
É um dos eventos mais esperados do ano musical paulistano. Primeiro, claro, pelas próprias sinfonias. Mas também pela expectativa em torno da interpretação de Järvi e seus músicos, que tem sido celebrada mundo afora.
Essa história de sucesso começa com uma nova edição da partitura, assinada por Jonathan del Mar, pesquisador que voltou aos originais de Beethoven, os cotejou com versões feitas por copistas e se deu conta de que havia, nas partituras utilizadas ao longo dos séculos 19 e 20, notas e indicações erradas. Ao mesmo tempo, entrava em cena um segundo ator: o chamado movimento da música historicamente informada, que pesquisava as técnicas de interpretação da época de Beethoven.
O que Järvi fez foi misturar esses dois elementos com um outro diferencial: a utilização de uma orquestra de câmara, com menos músicos do que uma sinfônica tradicional. Menos, clichê ou não, poderia significar mais: mais transparência, clareza - e um recomeço no modo como entendemos essa música.
"Foi uma pergunta da qual não pudemos fugir: por que gravar mais uma vez as sinfonias de Beethoven?", diz o maestro ao Estado, pouco antes de embarcar para o Brasil. "Mas já havíamos tocado juntos essas peças e então surgiu naturalmente o desejo de levar essa parceria mais adiante, com as gravações", explica.
O maestro conta que foram muitas as conversas com os músicos ao longo desse processo. E ressalta que a orquestra funciona de modo diferente: é gerida pelos próprios músicos, ou seja, cada projeto nasce com a participação e o desejo deles. "O grupo estava disposto a tentar algo diferente e, claro, isso já dá uma vantagem logo de cara. Mas o tamanho da orquestra nos pareceu pouco para justificar o projeto. Não poderia ser só isso, precisaríamos de uma nova maneira de pensar essa música, absorvendo os ensinamentos do passado, mas assumindo que somos um grupo de hoje, que pensa e reflete de acordo com a nossa época. Estabelecer uma ponte entre esses dois tempos foi o ponto de partida."
Para tanto, algumas regras foram colocadas. A mais importante delas: interpretar as sinfonias em conjunto antes de levá-las ao estúdio. "Quando você toca a quinta sinfonia sozinha, ou a sétima, a nona, enfim, você perde o contexto. A terceira, por exemplo, é um ponto de mudança na carreira de Beethoven. Mas, se você a toca depois da primeira e da segunda, já percebe essa mudança se estabelecendo. Estilisticamente, o ganho é gigantesco. E você começa a criar argumentos para acabar com alguns estereótipos."
E que estereótipos são esses? Mais do que identificar um ou outro, Järvi fala de modo geral. Beethoven viveu na passagem - ou ajudou na transição - do classicismo, em que a forma era predominante, ao romantismo, em que a emoção passa a ser indissociável da investigação estética. "Ele não foi um autor clássico ou romântico, mas, sim, viveu entre dois mundos e ambos se manifestam na sua criação. E é preciso aceitar essa dualidade para identificar por que suas obras são tão importantes na cultura ocidental."
É a partir daí que Järvi identifica aquela que considera a grande contribuição do compositor para a história da música. Com Haydn e Mozart, diz ele, uma sinfonia era apenas uma sinfonia, a música era apenas música. "Mas, com Beethoven, ela passa a ser uma ferramenta para expressar emoções humanas, conceitos, ideias. Essa é a grande mudança e não apenas elementos técnicos novos."
É em torno dessa essência, continua o maestro, que um intérprete deve agir. E é por isso que ele não dispensa a tradição. Filho e irmão de maestros - seu pai é o experiente Neeme Järvi; seu irmão, Kristian, um dos principais nomes da nova geração de maestros - ele brinca que nasceu no meio da música. "A tradição é algo muito familiar para mim. Quando penso em gravações de maestros como Wilhelm Furtwängler ou Otto Klemperer, com suas orquestras gigantescas e tempos mais lentos, o que me parece é que viveram em uma época na qual o diálogo com as ideias de Beethoven se dava pelo excesso, pela megalomania herdada de Richard Wagner no fim do século 19."
Ali, era preciso tocar mais alto, de forma mais solene, "em busca de uma profundidade que não é mais a nossa". "O que o nosso tempo exige é a transparência, a clareza, de forma que as ideias se articulem de modo mais claro, oferecendo ao ouvinte a apreensão de novos significados. Então, se você quer, por exemplo, ressaltar o som dos instrumentos de sopro, não coloca mais deles para tocar. Em vez disso, diminui o número de cordas."
http://www.estadao.com.br/noticias/impresso,classico-moderno,1059400,0.htm
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